Jornalismo de dados: apuração, análise e formas de visualização

       Para escrever sobre o chamado jornalismo de dados e seu processo de produção proponho duas abordagens: uma teórica que remete para a origem do termo e suas variações e um uma pragmática que aborda as etapas de produção do jornalismo com o uso e apropriação de dados. Entendo que o jornalismo de dados como prática é resultado de, pelo menos, três fatores: 1) uma aculturação da comunidade de jornalistas com a técnica do meio digital, buscando aprender as características do novo meio e incorporando novas condutas na medida em que a internet estabeleceu a convergência dos meios; 2) a intensificação de políticas públicas de acesso a dados governamentais de interesse público em formatos abertos e manipuláveis, o que ampliou a quantidade de base de dados à disposição como fonte;  3) a disponibilidade de softwares para extração, limpeza, análise e visualização de dados, tornando o produto da reportagem jornalística de dados mais preciso, multimídia e rastreável, ou seja, reprodutível como método científico de investigação.

A noção de jornalismo de dados está diretamente vinculada à noção de objetividade jornalística. A indústria de mídia do século XX forjou a partir de uma conduta profissional comum aos pares a profissionalização do jornalismo como forma de conhecimento, vinculada a valores notícia construídos socialmente. A linguagem jornalística esteve assim calçada sobre o relato o mais objetivo possível em relação ao fato sobre o qual se narra. O texto deveria ser escrito em ordem direta, de forma objetiva, clara, coesa, utilizando dados entre eles números, medidas, pesos e analogias quando necessário para descrever a história. Pois a discussão entre a subjetividade versus a objetividade jornalística está no centro do interesse do repórter Philip Meyer (2002) quando ele escreveu o clássico Jornalismo de Precisão. O autor propunha que os jornalistas se apropriassem de métodos das ciências sociais para investigar as pautas e assim se afastassem do senso comum opiniático. Colunistas de Los Angeles, à época, escreviam sobre as manifestações de rua de minorias considerando que os manifestantes via de regra eram pessoas pouco instruídas, imigrantes com dificuldade de adaptação e de baixo poder aquisitivo. Meyer propôs uma sondagem com uma amostra de manifestantes e o resultado contrapôs o senso comum dos colunistas: a maior parte dos manifestantes tinha pelo menos o ensino médio e não era imigrante sulista. Havia um banco de dados, números, porcentagens. Meyer, entusiasta que era dos bancos de dados e dos programas de computadores, chegou a defender que os repórteres aprendessem a programar códigos para ter mais controle e autonomia na análise das informações geradas pelo computador.

Os conceitos de jornalismo de precisão foram incorporados por um grupo de jornalistas investigativos que passou a usar os computadores como auxiliares na produção e nos processos jornalísticos, esse grupo era reconhecido como praticantes de RAC (reportagem assistida por computadores). Eles tinham mais familiaridade com os softwares e com o hardware e faziam melhor uso de editores de textos, tabelas, planilhas, programações visuais e outros recursos. Mais tarde, esses repórteres também foram os pioneiros no uso de busca avançada em bases de dados e em mecanismos de indexação como Cadê, Yahoo e Google. Esse era um grupo que estava mais vinculado ao conjunto de profissionais identificados com o jornalismo investigativo. Muitos autores também associam o jornalismo de dados ao jornalismo investigativo (BRADSHAW, 2014, 2012; TRASEL, 2014; NASCIMENTO, 2007). Assim, o jornalismo de precisão inspirou a prática da reportagem assistida por computadores que antecedeu o jornalismo de dados (BARBOSA, 2007, 2013; TRASEL, 2014; GRAY e BONEGRU, 2012) e o jornalismo computacional (STAVELIN, 2013 ).

A relação dos jornalistas com os computadores pode ser dividida em três fases: a partir dos anos 1980, com a chegada dos computadores às redações, os jornalistas começaram a utilizar os computadores como auxiliar na reportagem, produção, apuração, redação, diagramação, etc. A partir da chegada da internet de amplo acesso em 1995, os jornalistas passaram a usar os computadores não apenas como ferramentas, mas como estrutura de trabalho produção, edição e circulação do jornalismo. E na fase mais recente, pós-2010, quando o ambiente digital passou a ser visto pelos jornalistas como loco de fonte jornalística. Ao longo dessas etapas, os jornalistas foram aos poucos se familiarizando com a nova tecnologia e com as características do ambiente digital multimídia e hipertextual por natureza.

A terceira fase foi também embalada por políticas públicas de transparência digital que impulsionaram a disponibilização de dados públicos digitais (BRENOL, 2019) em vários países e, no Brasil, em especial, com a Lei de Acesso a Informação (LAI, 2013). Os jornalistas identificaram em leis como a de acesso a informação pública uma porta para ganhar mais autonomia de fontes governamentais e ampliar o poder de fiscalização dos atos e ações governamentais. A possibilidade de consolidar o uso e apropriação de dados públicos, utilizando técnicas do jornalismo de dados, criou no campo profissional uma rede de  jornalistas identificados com a prática e com a noção de mediação do debate público para provocar impacto em ações políticas e de gestão pública (BRENOL, 2019).

A possibilidade de reforçar o ethos profissional a partir de uma prática mais objetiva e precisa de fiscalização do poder, com mais autonomia, mais tempo e mais fontes, gerou no grupo um sentimento de união e uma necessidade de aprendizagem das técnicas. O chamado jornalismo de dados ou jornalismo guiado por dados se tornou um argumento de defesa do papel social da profissão em um ambiente cada vez mais tomado pela desinformação. Assim, os jornalistas iniciaram o processo de trabalhar a apuração, a análise e as formas de visualização em ambiente multiplataforma, utilizando as características próprias do jornalismo digital, as ferramentas digitais de análise e as técnicas clássicas de apuração jornalística. Jornalismo de dados é, antes de qualquer nomenclatura, jornalismo.

Bradshaw (2012) desenvolveu um esquema chamado de pirâmide invertida do jornalismo de dados. Segundo o autor, o repórter que vai trabalhar com grandes volumes de dados deve primeiro 1) compilar os dados, ou seja, reunir as bases de dados que interessam para o tema em questão, depois 2) limpar os dados, ou seja, aplicar fórmulas simples que possam identificar em uma planilha termos sobrepostos, entradas duplicadas ou vazias, erros de leitura, formatação incongruente e outros, 3) contextualizar os dados, verificar quem levantou esses dados, com qual método e com que objetivo, para que qualquer viés possa ser considerado na narrativa e 4) combinação, ou seja, cruzamento de dois grupos de dados, por exemplo, dados sobre desempenho de escolas municipais com dados geográficos de localização física das escolas para gerar uma interação sobre essas informações.

Mas o compilar, limpar, contextualizar e combinar são a primeira parte, a parte da apuração jornalística dos dados. As informações geradas nessa análise devem ainda ser complementadas com outras técnicas jornalísticas com entrevistas com fontes e especialistas e até cases de pessoas que possam representar empaticamente esses números. Bradshaw (2012) complementa o esquema com a segunda fase que ele chama de comunicação a qual inclui 1) visualização, ou seja, adequação dos dados à linguagem gráfica, narrativa, redação textual de começo, meio e fim, 2) socialização, espalhamento em mídias sociais, 3) humanização, ilustração com histórias de pessoas reais em especial para TV e rádio, 4) personalização, quando abre a possibilidade de o leitor recortar informações de acordo com sua região, idade ou interesse e 5) utilização, quando o jornal pode utilizar os dados para desenvolver ferramentas digitais como calculadoras, buscadores de empregos, buscador de candidatos a eleições e outros recursos.

 

 

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